Últimas Notícias

MULHER TIKUNA COM COVID-19 MORRE APÓS SER TIRADA DE AERONAVE COM PANE


Era 6 de julho quando a indígena do povo Tikuna Neuraci Ramos de Oliveira, diagnosticada com Covid-19, foi embarcada em um avião da empresa Manaus Aerotaxi para ser transferida de Tabatinga, no Alto Solimões, para a capital. No Amazonas, só em Manaus há UTIs (Unidades de Tratamento Intensivo) e estrutura para tratar pacientes graves do novo coronavírus. Neuraci era uma delas, mas nunca chegou a viajar. Já com o motor ligado da aeronave, foi detectada uma pane na turbina e a indígena teve de retornar ao Hospital da Guarnição de Tabatinga. Dois dias depois, ela morreu.

“Embarcaram ela e ligaram todos os aparelhos. Na hora da decolagem, deu problema no avião, disseram que era pane na turbina. Ela retornou ao hospital e o estado dela se agravou da noite para o dia. No dia 08, veio a óbito. Se ela tivesse viajado dois antes, acho que conseguiriam trazer a vida da minha esposa de volta”, diz Higson Dias Kanamari, presidente da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja). A Terra Indígena Vale do Javari fica no município de Atalaia do Norte, a 32 quilômetros de Tabatinga.

Neuraci é uma das centenas de vítimas da Covid-19 que morreram no Amazonas por deficiência na estrutura hospitalar do interior do Estado e transporte insuficientes para remoções aéreas. A Amazônia Real apurou junto à Secretaria de Saúde do Amazonas (Susam) que o governo Wilson Lima (PSC) disponibilizou apenas três aeronaves para atender pacientes infectados pelo novo coronavírus durante a pandemia. Para um estado de dimensões continentais, com 1.571.000 km², e a polêmica estratégia de centralizar o tratamento de casos graves na capital do Amazonas, o número de aeronaves tem sido incapaz de atender à demanda. E elas não saíram barato. 

O governo do Amazonas firmou contrato com a Manaus Aerotaxi, com dispensa de licitação, num total de R$ 4.151.079 para o período de 29 de abril a 25 de outubro. Outras três aeronaves disponibilizadas pelo Estado são usadas para a remoção de pacientes com outras enfermidades. A Susam afirma que, além de levar em consideração o estado clínico do paciente, as remoções acontecem de acordo com as distâncias de cada município. No início de julho, a empresa recebeu um aditivo de R$ 2,066 milhões para o serviço de transferência

Em 25 de maio, o Ministério Público Federal instaurou inquérito para “apurar a regularidade do Contrato de Prestação de Serviços n° 31/2020, firmado pela Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas (Susam) com Manaus Táxi Aéreo LTDA para remoção de três pacientes com covid-19”. O procedimento foi provocado por casos do município de Boa Vista do Ramos, no Baixo Rio Amazonas (a 271 quilômetros de Manaus), que precisaram de ação judicial da Defensoria Pública do Estado do Amazonas para serem transferidos para a capital. Segundo a Assessoria de Imprensa do MPF, o inquérito continua em curso.

Wilson Lima é investigado por fraudes na saúde durante a pandemia. Seu governo foi acusado pela Polícia Federal de adquirir respiradores superfaturados de uma empresa de vinhos. Ele teve seus bens bloqueados e sua prisão foi pedida pela PF, mas negada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ. Lima também passa por um processo de impeachment na Assembleia Legislativa do Amazonas.

Em abril, a ocupação de leitos de UTI em Manaus chegou a 96%. O pico de internação foi registrado em 23 de abril. Em junho, com a justificativa de queda nos casos, o governo encerrou internações de pacientes com covid-19 no Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto, uma das unidades de saúde de referência da capital.

No dia 6 de julho, o Hospital Nilton Lins, montado durante três meses para ampliar a capacidade de internação de doentes por Covid-19, também foi desativado. Apenas a ala indígena continua funcionando. Até 9 de julho, segundo informações do governo do Amazonas dadas à Amazônia Real, existiam 235 leitos de UTIs na rede pública estadual destinados a pacientes da capital e do interior. Naquele dia, a ocupação estava em 51%.


Contaminada dentro do hospital

Internada desde o dia 30 de junho no Hospital da Guarnição de Tabatinga (subordinado ao Comando Miliar da Amazônia), único do município com atenção à doenças de média complexidade, mas que não tem UTI, Neuraci Ramos de Oliveira tinha 44 anos e era mãe de oito filhos (cinco com menos de 18 anos) com o marido Higson Dias Kanamari. Ela também tinha três netos. Neuraci foi enterrada no mesmo dia de sua morte, em um cemitério aberto este ano em Tabatinga. Segundo o atestado de óbito, a morte dela foi causada por covid-19, pancreatite aguda e calculose de via biliar.

Desde janeiro, ela frequentava a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Tabatinga, na esperança de ser submetida a uma cirurgia. Em uma dessas idas ao hospital para tratar de outras doenças, Neuraci acabou contraindo o novo coronavírus.

“Ela ia na UPA e lá diziam que precisavam de médico cirurgião para a operação. Quando tinha médico, não havia material cirúrgico. Davam calmante e ela retornava para casa. Diziam que ia desinflamar. No dia 20 de junho, ela deu entrada novamente na UPA e acabou pegando a covid-19”, afirma Higson. Ele conta que na UPA, o estado da esposa piorou e ela precisou passar por procedimentos para retirar líquido do pulmão na tentativa de melhorar a sua respiração. Com a piora, ela foi transferida para o Hospital da Guarnição.

“Os médicos diziam que ela seria removida para Manaus. Isso nos dava esperança. Até que ela piorou bastante e ficou bastante debilitada. Teve parada cardíaca e precisamos que o Hospital da Guarnição arrumasse respirador para ela receber transferência para lá. Na UPA não tinha nem remédio para anemia. Nós que compramos os medicamentos”, denuncia ele.

No dia 3 de julho, Higson foi informado pelo diretor do Hospital da Guarnição que Neuraci já estava cadastrada, desde que chegou, no Sistema de Transferências de Emergências Reguladas (Sister) da Susam e era a primeira da fila dos pacientes daquela unidade de saúde.

Dois dias depois de falar com o diretor, ele foi novamente comunicado, desta vez por uma funcionária do hospital, que Neuraci estava “pronta para viajar” para Manaus. “Eu estava torcendo para que não houvesse outros pacientes mais graves para poder ela ir. Mas o que diziam é que era o Estado do Amazonas é que tinha que mandar o avião, era o Estado que tinha que fazer a remoção”, lembra Higson.

À Amazônia Real, a Susam informou que havia pacientes em estados clínicos mais graves do que Neuraci e com prioridade na transferência e, que no mesmo dia da falha técnica no avião que faria a remoção dela [em 6 de julho], a empresa enviou uma segunda aeronave. Esta informação foi negada por Higson. Segundo ele, a informação que recebeu foi que apenas no dia seguinte é que seria enviada outra aeronave.

“A secretaria vai instaurar procedimento interno para investigar as responsabilidades diante do ocorrido”, disse a nota da Susam.

Segundo a Susam, havia a suspeita de colelitíase (pedra da vesícula) em Neuraci, mas não havia indicação cirúrgica de emergência. O órgão afirmou ainda que, segundo a direção da UPA de Tabatinga, a paciente informou que sabia do quadro de colelitíase há mais de seis meses, mas não procurou o atendimento para a realização da cirurgia eletiva. Essa versão difere do relato do marido. Confirme Higson, Neuraci ia regularmente à UPA na tentativa de receber tratamento e diminuir as dores que sentia.

Nascida em uma comunidade do município de Benjamim Constant, também no Alto Solimões, Neuraci vivia com a família na zona urbana de Tabatinga e por isso não era considerada indígena “aldeada”. Assim, não recebia cobertura de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Solimões, unidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. Ela era atendida apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sem o respaldo da política indígena de saúde.

No último dia 17, Higson levou flores para o túmulo de Neuraci. Com pouco tempo para processar a perda da esposa, aos poucos ele está retomando a coordenação de campanha para arrecadar fundos e doações para seu povo – Kanamari -, o mais afetado pela covid-19 na TI Vale do Javari, após se afastar temporariamente para acompanhar a esposa hospitalizada. Ele é presidente da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja).


Ações judiciais para fazer transferências

Como uma das maiores taxas de infecção do país, o estado do Amazonas atravessa a pandemia com infraestrutura deficiente para atender pacientes do interior. Em casos urgentes, é preciso tomar medidas judiciais para que pacientes com Covid-19 sejam removidos para Manaus; a maioria vem a óbito.

Até 10 de julho, o Ministério Público do Estado (MPE) ingressou com cinco ações judiciais para remoção de pacientes em estado grave para Manaus: duas em Tabatinga, sendo que uma delas incluía a transferência de quatro pacientes; e três no município de Tefé, localizado no Médio Rio Solimões. Em Parintins, no Baixo Rio Amazonas, o MPE ingressou com um mandado de segurança com o objetivo de transferir quatro pacientes.

Antes da decisão judicial para a ação do MPE em Tabatinga, dois pacientes faleceram – um deles era um bebê Tikuna de três meses. Uma terceira pessoa foi transferida para o Hospital Delfina Aziz, em Manaus, e a quarta não chegou a ser removida por recusa da família. A promotoria de Tefé também ingressou com ações civis públicas para tentar a transferência de três pacientes em estado grave por Covid-19.

“O Hospital Regional de Tefé recebeu do Estado do Amazonas a capacitação para atendimento de média complexidade, no entanto, não tem capacidade para a regulação de leitos de UTI, tampouco tem sido atendido pelo Estado quando há necessidade de transferência de pacientes para a Capital”, diz trecho das ações judiciais do MPE.

Segundo a ação do MPE, com data de 23 de abril, um dos pacientes aguardava desde 14 de abril pela transferência, “mas o transporte não foi feito devido o Estado não tendo data para aeronave realizar a remoção dele”.

“É de extrema necessidade excelência o acatamento da presente providência, visto estarmos diante de patente OMISSÃO DO ESTADO [sic], que não pode alegar dificuldades de ordem técnica ou financeira à vista da vida de pessoas que necessitam de sua intervenção para viver”, diz a ação. A assessoria de imprensa do MPE disse à Amazônia Real que os pacientes foram transferidos para Manaus, mas não informou se eles sobreviveram ao tratamento. Procurado, o governo do Amazonas disse que “o estado de saúde dos pacientes são reservados à família”.

A reportagem indagou se o MPE recomendou ao governo do Amazonas a adoção de medidas sobre o atendimento a pacientes do interior. O órgão respondeu que “as medidas tomadas pelas promotorias foram de antes da chegada da pandemia no interior. Nelas, o MP recomenda ao poder público que dotasse de condições das unidades de saúde locais, especialmente nas cidades polo de saúde, com equipamentos e profissionais capazes de atenderem pacientes de covid-19 em média e alta complexidade”.

Em cinco polos de atendimento oferecido a 31 dos 62 municípios do Amazonas, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) entrou com três ações judiciais e precisou atuar com medidas extrajudiciais.

A situação mais grave ocorreu no Polo do Baixo Amazonas, com sede em Parintins, quando foram ingressadas três ações judiciais. Embora tenham sido atendidas, os pacientes faleceram em hospitais de Manaus. Os três pacientes eram do município de Boa Vista do Ramos e deveriam ter sido atendidos por hidroavião e por “considerável demora”, conforme consta os autos do inquérito aberto pelo MPF para investigar o contrato entre a Manaus Aerotáxi e o governo do Amazonas.

“A situação, que já ensejou óbito de um paciente e demorada espera por outro, enseja a suspeita de que haja irregularidade na execução contratual e na fiscalização dos serviços, com utilização insuficiente do hidroavião”, diz o procurador da República Thiago Pinheiro Correa, nos autos do inquérito, que a Amazônia Real teve acesso, ao justificar a abertura do inquérito.

Já em Parintins, um paciente faleceu antes da transferência, segundo a DPE, mesmo após o Sister ter regulado o voo. “Este atendimento foi feito extrajudicialmente, sem a necessidade de ingresso de ação judicial”, diz nota da DPE enviada à reportagem.

“É fato notório e, portanto, não depende de provas que o interior do Estado do Amazonas possui um verdadeiro deserto em oferta de UTIs (não há, hoje, um leito sequer), fato que é agravado pelas não menos conhecidas dificuldades de deslocamento dos municípios do interior do Estado para a capital Manaus”, diz trecho da ação da DPE.

Na ação, a DPE diz que, “por mais que aparentemente o serviço de transferência de pacientes graves do interior para a capital esteja em funcionamento,a experiência tem mostrado que o tempo de resposta é deficiente”.

Segundo a assessoria de imprensa da DPE, não houve ajuizamento em outros polos do interior do Amazonas, mas a DPE informou que no município de Jutaí, acompanhou o caso de um paciente deu entrada em estado grave no hospital e foi inserido no Sister.

Também ocorreu um caso de paciente proveniente do município de Alvarães, cuja transferência para Tefé se deu nos termos do Plano de Ação de Enfrentamento ao Covid-19, com monitoramento da Defensoria Pública, mas ele faleceu durante a viagem para Manaus.

Para a DPE, ao ser questionado sobre como avalia a atuação do governo do Amazonas na atenção aos pacientes infectados pelo novo coronavírus, “o contexto da pandemia revelou de forma muito enfática as deficiências estruturais do serviço de saúde no Estado do Amazonas, especialmente no interior, cuja população tem expressiva dificuldade de acesso a diversos serviços públicos”.

O órgão considera que algumas medidas poderiam ter sido tomadas de maneira mais rápida e eficiente, “como o aumento da quantidade de viagens de UTI aérea e a aquisição de maior quantidade de testes”.

Segundo a DPE, após várias tratativas para melhorar a atenção aos pacientes, a Susam informou que assinaria um termo aditivo recomendado no dia 7 de julho para aumentar a quilometragem dos voos.

Procurada, a Susam disse que o aditivo ao Contrato 031/2020, com a empresa Manaus Aerotaxi, foi assinado em 13 de julho e encaminhado para publicação no Diário Oficial. O aditivo prevê acréscimo no quantitativo de quilometragem contratada para atender a demanda de remoções de pacientes do interior do Estado.


Sem respostas para demora na transferência

A Amazônia Real procurou a empresa Manaus Aerotaxi para seus proprietários falarem sobre os problemas técnicos da aeronave e demais assuntos relativos ao contrato com o o governo, por meio da assessoria de imprensa, mas não recebeu respostas. A direção do Hospital da Guarnição de Tabatinga também foi procurada e disse que a resposta viria pelo Comando Militar da Amazônia (CMA). À Amazônia Real, o tenente-coronel Gama, assessor de imprensa do CMA, informou que o órgão não iria responder as perguntas da reportagem.

Em nota, a Susam informou que “tem atendido a todas as solicitações de informações realizadas pelos órgãos de controle, enviando documentos e participando de reuniões com membros dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, além de Defensoria Pública, em que são apresentadas todas as medidas adotadas pelo Estado para a assistência dos municípios do interior e da capital”.

Segundo a assessoria do órgão, há 21 ventiladores mecânico em Tabatinga, sendo que 18 estão no Hospital da Guarnição e 3 na UPA. No Amazonas, existem 138 respiradores “adquiridos pelo Estado e por meio de articulação de doações do Governo Federal e empresas privadas”.

Para Higson Kanamari, a morte de sua mulher representou uma “imprudência muito grande” das autoridades públicas de saúde. Ele responsabiliza o Estado do Amazonas pela morte da esposa.

“O Estado brasileiro e do Amazonas deveriam ter mais responsabilidade com as pessoas do interior que estão com coronavírus. Alguns estão entubados, por dias esperando, aguardando a remoção. O que aconteceu com a Neuraci é lamentável, é chocante. Ela entrou para um quadro de mortalidade que poderia ter sido evitada. Eu ainda estou tentando absorver as coisas. Pensei em processar o Estado, mas seria uma ferida aberta na família. Isso afetaria meus filhos, seria muito sofrido. Se não fosse a burocracia do Estado, se eles tivessem mais respeito pela vida humana, com certeza minha esposa estaria viva hoje”, desabafa. (Colaborou Izabel Santos).


FONTE: Amazônia Real

Nenhum comentário