SECA EXTREMA E TEMPERATURA RECORDES DE ATÉ 41ºC LEVARAM AO SUPERAQUECIMENTO DOS LAGOS AMAZÔNICOS, REVELA ESTUDO PUBLICADO NA SCIENCE
A baixa velocidade do vento, pouca profundidade da água, a alta turbidez, a forte radiação solar e a baixa cobertura de nuvens foram os principais fatores que levaram ao superaquecimento das águas dos lagos amazônicos durante a seca extrema de 2023, no Amazonas. O fenômeno resultou na morte de pelo menos 209 botos-vermelhos e tucuxis em menos de dois meses. As conclusões fazem parte de um artigo publicado na revista Science na quinta-feira (6), com a participação de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI).
O ano de 2023 registrou ondas de calor recordes no mundo, com temperaturas elevadas do ar e da superfície do mar. Na Amazônia, a seca severa reduziu o nível de água em lagos da várzea a menos de dois metros, o mais baixo já registrado, provocando a morte de botos e de milhares de peixes. Nesse cenário, os lagos amazônicos deixaram de oferecer refúgio térmico para as espécies aquáticas, que ficaram expostas às altas temperaturas tanto na superfície quanto em profundidade.
Assinado por mais de 40 autores de instituições do Brasil, França e Estados Unidos, o estudo foi liderado pelo pesquisador do Instituto Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Ayan Fleischmann. O trabalho analisou o aquecimento em dez lagos da Amazônia Central: Tefé, Coari, Samaumerinha, Amanã, Bua-Buá, Cedrinho, Janauacá, Calado, Miriti e Castanho. Entre setembro e outubro de 2023, no Lago Tefé (AM), a temperatura da água em toda a coluna d’água (volume de água da superfície até o fundo) ultrapassou 40 graus Celsius (°C) por vários dias, chegando a 41 °C, níveis nunca registrados em águas interiores tropicais.
“O artigo mostra que, em Tefé, toda a coluna d’água atingiu valores superiores a 40°C, sem qualquer camada mais fria para servir de refúgio. Nessas condições, os peixes — organismos ectotérmicos com tolerâncias térmicas estreitas — ficam submetidos a temperaturas letais contínuas. Além do estresse térmico direto, a água quente reduz drasticamente o oxigênio dissolvido, agravando a hipoxemia”, explica o pesquisador do Inpa e coautor do artigo, Adalberto Luis Val.
Fatores do superaquecimento
Modelos hidrodinâmicos mostraram que o aquecimento extremo dos lagos foi favorecido pela combinação entre alta turbidez, baixos níveis de água, radiação solar intensa e ventos fracos.
De acordo com o estudo, a alta turbidez intensifica o aquecimento da água, sobretudo, quando o nível está baixo na estação seca. O vento, ao provocar turbulência, suspende os sedimentos do fundo, aumentando ainda mais a turbidez e a absorção de calor.
Além disso, a baixa velocidade dos ventos reduziu a perda de calor da água durante a noite, enquanto o forte aquecimento no dia, elevava ainda mais a temperatura da água.
O gerente científico do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA/Inpa) e coautor no artigo, Bruce Forsberg, explica que quando o nível da água fica baixo, o vento que passa por cima dos lagos cria uma turbulência que levanta sedimentos do fundo. “A água ficava muito turva, além de rasa. E essa turbidez faz com que a energia de sol seja toda absorvida no primeiro metro de profundidade, esquentando muito a superfície. O nível de energia do sol ficou maior do que normal nesse período, por causa da falta de nuvens. Tivemos cerca de quatro meses sem nuvens”, conta o pesquisador.
Tendências de aquecimento
A análise de dados de satélite de 24 lagos amazônicos, entre 1990 e 2023, revelou uma tendência de aumento gradual da temperatura da água de, em média, 0,6°C a cada década, chegando a até 0,8°C por década em alguns lagos.
“Além disso, eventos de aquecimento acima da média têm sido mais frequentes na última década, alertando para a tendência futura de eventos cada vez mais extremos e comuns na região. Em 2024, uma outra seca extrema trouxe novamente ondas de calor para os lagos amazônicos”, observa Ayan Fleischmann.
Outro dado preocupante foi a amplitude térmica diária observada, que chegou a 13,3°C. “Em condições normais, a água mais profunda geralmente é mais fria, servindo como uma espécie de refúgio para os animais escaparem de temperaturas muito altas. Na seca extrema de 2023, contudo, esse refúgio simplesmente não existia”, alerta Fleischmann.
Impactos ecológicos e sociais
O aquecimento extremo da água levou à mortalidade massiva de botos e peixes, além do deslocamento de populações de peixes para outros rios. No dia 28 de setembro de 2023, com temperatura de 39,5°C , foram encontradas 70 carcaças de botos no lago Tefé.
De acordo com Adalberto Val, o deslocamento é um mecanismo natural de fuga, mas sua eficácia é limitada em eventos extremos como o de 2023. Estudos anteriores já mostravam que muitas espécies de peixes amazônicos começam a perder desempenho fisiológico acima de 33°C, o que torna inevitáveis mortes em larga escala.
“Em 2023, muitos lagos ficaram isolados ou extremamente rasos, restringindo rotas de migração. Mesmo onde havia conexão — como no canal de Tefé — as temperaturas permaneceram muito altas por longos trechos, ultrapassando 37°C, o que impõe forte barreira fisiológica. Além disso, a adaptabilidade térmica dos peixes amazônicos é modesta: eles toleram apenas aumentos pequenos e graduais, não saltos abruptos de 6–10°C em poucos dias. Portanto, embora alguns indivíduos possam escapar, a maioria das populações enfrenta condições críticas antes que a migração seja possível”, ressalta Val.
As altas temperaturas e o baixo nível dos rios não causaram apenas impactos ecológicos. As comunidades ribeirinhas que vivem em estreita dependência das águas dos rios, lagos e igarapés para sobreviver também foram afetadas, enfrentando escassez de água potável, alimentos, restrição à pesca, dificuldade de navegação e isolamento.
Monitoramento contínuo
O estudo reforça que o monitoramento de longo prazo de lagos amazônicos é essencial para compreender o impacto das mudanças climáticas nos ambientes aquáticos amazônicos. E é nessa frente que atua o projeto Lagos Sentinelas da Amazônia, coordenado por Ayan Fleischmann. A iniciativa busca entender as dinâmicas e os desafios socioambientais, a hidrologia e a qualidade das águas de cinco lagos da Amazônia. Os estudos envolvem quatro lagos situados no Amazonas - Tefé, Coari, Janauacá e Serpa- e um no Pará - Grande de Monte Alegre.
O projeto reúne 15 instituições nacionais e internacionais, entre universidades, instituições de pesquisa, órgãos municipais e federais, além da participação de comunidades ribeirinhas. Bruce Forsberg coordena as pesquisas no lago Janauacá.
O Lagos Sentinelas é um projeto associado ao Programa LBA e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Autores
Ayan Fleischmann, Bruna Mendel, Priscila Alves, Lady Custódio, Maria Cecília Gomes, Débora Hymans, Isabela Keppe, Paula dos Santos Silva, Camila Vieira, Rodrigo Xavier, André Zumak, André Coelho, Hilda Chávez-Pérez e Miriam Marmontel do Instituto de Mamirauá; Fabrice Papa da Université Toulouse (França); Stephen K. Hamilton da Universidade do Estado de Michigan (EUA); John Melack, Wencai Zhou e Sally MacIntyre da Universidade da Califórnia(EUA); Bruce Forsberg do Programa LBA/Inpa; Adalberto Val, Maiby Bandeira, Raize Mendes, Renan Nascimento e Susana Braz-Mota do Inpa; Walter Collischonn, Leonardo Laipelt, Júlia Brusso Rossi, Bruno Comini de Andrade e Anderson Ruhoff da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Eduardo G. Martins da Universidade do Norte da Colúmbia Britânica; Naziano Filizola, Rogério Marinho, Ednaldo Bras Severo, Waleska Gravena, Michel Nasserda da Universidade Federal do Amazonas (Ufam); Mariana Frias da WWF Brasil; Renata Alquezar e Lucas Lauretto do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); Leandro Guedes Santos e Daniel Medeiros Moreira do Serviço Geológico Brasileiro; José R. Pacheco Peleja da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).





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