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INDÍGENAS RECORREM À MEDICINA TRADICIONAL NO TRATAMENTO CONTA A COVID-19


“Vou usar o benzimento tradicional e, desse jeito, vai curar mais rápido. Dito e feito, acertei”, é com essa resiliência que o pajé Ercolino de Jorge Araújo Alves, da etnia desana, explica como decidiu encarar a pandemia da covid-19 em sua comunidade, em São Gabriel da Cachoeira, no extremo noroeste do Amazonas. O pajé diz que recebe os ensinamentos de seu avô desde os 14 anos e que o ancião “aparece nos meus sonhos me dizendo o que fazer.”

Pois quando os primeiros casos de coronavírus apareceram na região, colocar em prática a sabedoria medicinal empírica era, senão a melhor, a única possibilidade. Afinal, o terceiro maior município em área do Brasil – com 109.185 km² – só é acessível por barco ou avião, e seus 45 mil habitantes, 75% dos quais são indígenas, contam com um único hospital e nenhum leito de UTI – o mais próximo fica na capital do estado, Manaus, a mais de 850 km de distância.

Assim que as notícias sobre a pandemia começaram a chegar, indígenas, médicos, ONGs e ativistas se uniram a fim de preparar a população para o pior. Logo foi criado o Comitê Interinstitucional de Enfrentamento e Prevenção ao Coronavírus, formado por equipes de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena-Alto Rio Negro, secretaria municipal de saúde, Funai e Forças Armadas, com parceria do Instituto Socioambiental (ISA) e colaboração do Greenpeace.

O primeiro desafio era levar informações sobre uso de máscara, álcool em gel e outras medidas de prevenção para as 750 comunidades do município, algumas a 14 dias de barco do centro urbano. Parte da comunicação teve que ser traduzida, e cartilhas foram escritas em diferentes idiomas, já que o português é apenas uma entre 16 línguas faladas por lá. Além do tradicional rádio, outro meio de comunicação importante foi o Whatsapp. A rede de comunicadores indígenas Wayuri é um dos grupos que distribui boletins de áudio e informa a população sobre como agir.


“Pelo menos conseguimos, em um mês, informar a população”, conta o médico Guilherme Reis Monção. “Quando o primeiro caso apareceu, todos já sabiam o que fazer.” Atendendo pelo programa Mais Médicos há um ano, ele emendou 30 dias de trabalho em campo com quatro meses de atendimentos e negociações na busca por equipamentos para atender aos pacientes de covid-19. “Pouco a pouco, a gente começou a ver que comunidades inteiras já tinham pegado o vírus [...]. Então, eles [indígenas] começaram a utilizar seus próprios remédios. Encontramos velhinhos, de 70 anos, bem e contando: ‘Olha, doutor, eu fiquei seis dias na rede, mas tomando essas medicações eu sarei’”, lembra Monção. Ele enfatiza que remédios tradicionais não têm evidências cientificas que comprovem a eficácia no tratamento da covid-19, mas “a gente percebe que, de alguma forma, está funcionando no controle dos sintomas da doença. Então, começamos a agregar e possibilitar que os indígenas atendidos em nossas unidades usassem a medicação deles – chás, benzimentos – junto com a nossa. Se eu tiro isso e coloco só o oxigênio, talvez eles não entendam.”

Também foram criadas Unidades de Atenção Primária Indígena (UAPIs) – enfermarias de campanha montadas em pontos estratégicos do rio Negro que oferecem oxigênio e atendimento básico de saúde. As UAPIs contam com médicos brancos e pajés, como Ercolino, e os doentes ficam em redes. “A ideia agora é que todas as 12 UAPIs tenham as medicações dos índios também – as garrafadas, chás de pé de limão com alho. Há uma tribo de recente contato que toma chá de uma folha que se chama escama-de-pirarucu”, conta o médico. “A gente continua o nosso tratamento, mas somado com o deles. É uma forma de fortalecer o viés cultural como povo, eles sentem que a medicina tradicional também funciona. Acho que é uma experiência muito boa.” Fruto do mesmo comitê, a organização Médico Sem Fronteiras teve iniciativa semelhante, construindo Centros de Acolhimento que respeitam a cultura indígena.

A carioca Juliana Radler, analista do ISA, trabalha e mora em São Gabriel há quatro anos e entende que a pandemia trouxe uma virada no modo de encarar a doença pelo povo indígena. “Vivemos quatro meses de ambiente de guerra contra o vírus, uma sensação que inicialmente era de fragilidade e medo. Depois, houve uma virada”, diz ela. “Os pajés perceberam que precisavam lutar contra isso e sobreviver. Então, nós brancos saímos em busca de recursos para montar as UAPIs e os povos indígenas, dos seus remédios.” Ela mesmo disse ter superado os sintomas de covid-19 – diagnóstico que seria descartado em teste negativo para o vírus – com a ajuda de receitas indígenas.


Assim como tem acontecido em países que conseguiram controlar a epidemia, muitas vezes são líderes mulheres as responsáveis por manter a saúde da população. Entre elas está Elizangela da Silva, coordenadora do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações dos Povos Indígenas do Rio Negro (Foirn). “Neste momento, percebemos que a nossa luta valeu a pena porque as mulheres não esqueceram dos conhecimentos indígenas”, diz ela. “Durante mais de 520 anos resistindo, conseguimos achar vários medicamentos, chás, plantas que tínhamos no quintal, na roça, começamos a usar a nosso favor.”

O povoado de Elizangela fica a dois dias de barco motorizado do centro urbano. “Remando, são duas semanas”, segundo ela. Mesmo assim, o vírus não tardou em chegar lá. “Nós, da etnia baré, fomos os mais infectados. Uma das razões é porque estamos mais perto da cidade do que outras etnias, mas tivemos menor índice de mortalidade. Isso porque o povo baré é muito novo, [...] temos poucos anciões de mais de 60.” Segundo Elizangela, a jovialidade é fruto de séculos de contato com os brancos, que proibiram o idioma original e transmitiram diversas doenças. A etnia, que tem representantes na Venezuela, chegou a ser considerada extinta no Brasil. “O povo baré não tem mais nem a própria língua, nos apoderamos da língua nheegatu [língua geral] para poder sobreviver e manter a cultura viva”."

Orgulhosa da resiliência de seu povo, Elizangela conta que, ao navegar para entregar os insumos arrecadados pela campanha Rio Negro Nós Cuidamos – coordenada pelas mulheres da Foirn –, encontrou povoados voltando às origens. “As pessoas falam que estamos perdendo, mas, na verdade, estamos perdendo o que nos foi ensinado de cima para baixo. Por um lado, nós estamos é ganhando, em muitos locais onde entregamos os mantimentos as pessoas estavam pescando, trabalhando na roça”, diz ela. “Voltamos a fazer o que nossos ancestrais nos ensinaram, não estamos aprendendo português, matemática, história, mas na nossa cultura vamos voltar da quarentena nota 10.”

Curas indígenas em Manaus

A três dias de barco dali, em Manaus, João Paulo Tukano, 48 anos, sentiu os primeiros sintomas da covid-19 e logo recorreu às curas de sua etnia. “Eu passei 15 dias com covid, foi horrível, mas resolvi fazer o tratamento com as possibilidades que tinha na minha frente”, contou o indígena da etnia tukano nascido em uma comunidade no rio Tiquiê, na região do Alto Rio Negro, e hoje morador da capital do Amazonas. “Tomei todos os cuidados. Fiz bahsesse [ou benzimento], defumação, tomei chás de plantas medicinais e decidi que não ia para o hospital, se fosse para morrer ia morrer aqui mesmo.”


João Paulo lembrou dos ensinamentos de seu avô, “um grande yai”, e de seu pai, “um kumu”, considerados os curandeiros de seu povo – “algo que vai além da figura tão conhecida do pajé”, segundo ele. “Nossas concepções de saúde e doença passam por outra lógica. E nossas técnicas são muito mais voltadas a partir da consideração de que o corpo é afetado por uma rede de relações com a água, a floresta e o ar. Tudo isso está em jogo quando se fala na questão da saúde. Espero que um dia as pessoas entendam isso.”

Junto com alguns familiares, João Paulo fundou o Centro de Medicina Indígena da Amazônia – Bahserikowi’i, na língua original. O projeto nasceu de uma briga com médicos de hospitais de Manaus que trataram sua sobrinha, vítima de uma picada de cobra. “Os médicos queriam amputar, e nós não deixamos”, conta. “Depois de muita disputa, conseguimos, com outra equipe médica, unir os dois tratamentos, o branco e o indígena, e hoje ela corre pela aldeia jogando futebol.” 

Também em Manaus, o pajé Diakara Desano – cujo nome em português é Jaime Moura Fernandes – sentiu os sintomas da covid-19 depois de voltar de uma viagem para o Rio de Janeiro. “Falei para minha esposa como estava me sentindo e ela disse, você está com covid. Comecei a fazer chá, fiz benzimento. Melhorei, mas ainda tinha dores no corpo, então também fiz pomadas”, conta Diakara. “Eu já fazia tratamento com benzimento antes, [por isso] tenho aqui em casa sara-tudo, a planta da amora, a folha de capeba, o pobre-velho, folha de goiaba, folha de limão. [Essas] são as que tem na cidade, para quem mora nas aldeias, são outros remédios.”

Segundo o pajé, todos da família – cerca de sete pessoas – pegaram o vírus, e todos foram tratados da mesma forma. “Cuidei da mesma maneira. Ficaram bem, ele [o vírus] desistiu no meio do caminho e foi embora. Ele foge do índio.”

Com a memória viva de outras epidemias (gripe, sarampo e tuberculose, por exemplo) que os indígenas sofreram desde o contato com o homem branco, Diakara reinvindica o reconhecimento da sabedoria indígena pelo homem branco. “Nós já sofremos muito, fomos atacados por muitos vírus, não só os vírus das doenças, mas os ‘vírus pessoas’”, diz ele. “Porque para nós, remédio não indígena é inimigo do corpo pois não cura, só alivia. E assim as doenças avançam.”

Para garantir alguma renda e sobreviver na área urbana durante a pandemia, Diakara e sua esposa, Regina Satere, começaram a produzir máscaras de pano para vender, contando com o apoio da Associação de Mulheres Indígenas Satere Mawe. Além dos grafismos simbólicos desenhados por Diakara, as peças são benzidas conforme o tratamento que o pajé acredita ser necessário a quem vai usá-las.

Parentes de Minas Gerais

A mais de 3 mil km de São Gabriel da Cachoeira, na região do médio Rio Doce, em Minas Gerais, o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak conta que seu povo vive uma situação diferente dos parentes da Amazônia, pois, de certa forma, eles já estavam em isolamento devido a uma série de crimes ambientais. A lama da barragem de Bento Rodrigues, da empresa Vale do Rio Doce, que passou destruindo e contaminando fauna e flora da região em 2015, foi o último evento.

“Estamos vivendo numa condição de quase refugiados dentro do nosso território. Abastecidos por caminhão pipa e cesta básica. Então, não tivemos que ir para a fila da Caixa pegar os R$ 600 e nem fazer campanha de donativo porque já estávamos dentro de um programa emergencial”, disse Ailton. “Acho que o fato de a gente já se encontrar assim supõe outras rotinas e facilitou respeitar as orientações da quarentena.”

Até o momento, não há registro de casos na comunidade Krenak, formada por cerca de 130 famílias. “Não chegou e não queremos que chegue. Aqui ninguém relaxou, levam a sério e há também um sentimento de luto coletivo”, diz ele, que ressalta a necessidade de ficar atento a capacidade de disseminação do coronavírus e lembra que essa pandemia é muito diferente das outras epidemias que já afligiram indígenas.

“Os parentes na Amazônia sabem o que é uma gripe, um contágio de meningite. A diferença de uma epidemia para uma pandemia é que ela não deixa ninguém de fora”, diz ele. “A própria ideia de utilizar a medicina indígena fica prejudicada pois os que morrem primeiro são os detentores do conhecimento sobre as práticas terapêuticas.” Krenak vê o Brasil em estado de abandono e acha que seu povo deve manter distância da confusão gerada pelo governo em relação à pandemia, que tem disseminado informações contraditórias e distribuído cloroquina para indígenas, remédio cuja eficácia no tratamento da covid foi descartada por diferentes pesquisas.

FONTE: Nationalgeographicbrasil

FOTO:Christian Braga

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